
Já não é novidade, para alguns de vós, o meu gosto especial por Eça de Queiróz. Por isso, decidi escrever um pouco sobre o autor, e um dos seus livros, ou melhor, sobre o contexto sócio-cultural e histórico de um dos seus livros (o meu favorito) - "Os Maias".
De forma a não tornar o texto muito descritivo, farei uma breve biografia do autor e o restante texto criei-o em forma de entrevista virtual a Eça de Queiróz. Espero que gostem.
De forma a não tornar o texto muito descritivo, farei uma breve biografia do autor e o restante texto criei-o em forma de entrevista virtual a Eça de Queiróz. Espero que gostem.
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José Maria Eça de Queiróz nasceu a 25 de Novembro de 1845, na Póvoa de Varzim. É filho de José Maria de Almeida Teixeira de Queiróz, magistrado e homem de letras, que só se casa com a mãe de Eça de Queiróz quatro anos após o seu nascimento. Estuda, como interno, no Colégio da Lapa, no Porto e é aí que se inicia nas leituras de Garrett, por influência do director, pai de Ramalho Ortigão.
Em 1861 vai para Coimbra, onde se forma em Direito, no ano de 1866. É então que conhece Antero de Quental e outros, que virão a formar a chamada "Geração de 70". Em Março de 1866 publica na "Gazeta de Portugal" o seu primeiro texto: "Notas Marginais". Juntamente com Antero de Quental, e sob influência de Baudelaire, cria a figura "satânica" de Fradique Mendes, verdadeiro duplo de Eça. Ainda em 1866 instala-se em Lisboa, na casa de seu pai, onde cria o "Grupo do Cenáculo"
Três anos depois assiste à abertura do canal do Suez e visita o Egipto e a Palestina, onde recolhe material para o romance "A Relíquia", publicado em 1887. Em Évora cria um jornal da oposição, "ODistrito de Évora". Em Julho de 1870 é nomeado administrador do concelho de Leiria, cargo que ocupa durante um ano, e cujo ambiente social é recriado em "O Crime do Padre Amaro". Escreve durante esse período, em colaboração com Ramalho Ortigão, um folhetim para o "Diário de Notícias": "O Mistério da Estrada de Sintra", cuja intriga marcadamente policial abala a tranquilidade estagnante dos leitores.
Em Novembro de 1872, parte como cônsul para o Havana, seguindo em missão oficial para os Estados Unidos. É transferido para o consulado de Newcastle, Inglaterra em Novembro de 1874, seguindo-se Bristol. Em 1883 é eleito sócio da Academia das Ciências (sem nunca lá ter ido) e casa-se com a irmã do Conde de Resende, seu amigo. Em 1888 é nomeado cônsul em Paris, concretizando assim, o sonho da sua vida, e aí permanece até à sua morte, a 17 de Agosto de 1900.
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E agora, a entrevista virtual a Eça de Queiróz, sobre o contexto sócio-cultural e histórico de "Os Maias".
Homem do Leme - Sabemos que os maiores acontecimentos da década de 70 foram: a Geração de 70 e, consequentemente, a Questão Coimbrã. Tudo começou com uma carta de Feliciano de Castilho, onde ele atacava ironicamente os dois novatos com maior influência em Coimbra - Antero de Quental e Teófilo Braga. Podia-nos contar estes acontecimentos mais detalhadamente?
Eça de Queiroz - Antes de mais queria agradecer o facto de me terem convidado a vir aqui, falar de acontecimentos tão marcantes para a minha vida e para a vida de todos os portugueses, acontecimentos esses que influenciaram homens de letras de hoje e que influenciarão homens de letras de gerações futuras. Retomando agora o assunto da nossa conversa: tal como foi dito, toda a questão Coimbrã teve início com uma carta-posfácio escrita por Castilho e editada com o "Poema da Mocidade" de Pinheiro Chagas, em 1865. Essa carta, atacava desapropriadamente, Antero de Quental e Teófilo Braga que tinham publicado respectivamente, "Odes Modernas" e "Visão dos Tempos" e que pelas ideias expressas tinham perturbado Castilho...
HL - ... entretanto, Castilho nomeia Pinheiro de Chagas para regente da cadeira de Literatura Moderna da Faculdade de Letras...
Eça - ... sim, sim; cargo esse que era disputado também por Antero de Quental, Teófilo Braga e Vieira de Castro. Mas é claro que Feliciano de Castilho se opôs a todos estes candidatos, alegando que era necessário pôr fim à desorientação presente na língua portuguesa. É então que Antero de Quental escreve uma carta, conhecida pelo nome de "Bom Senso e Bom Gosto", onde insulta violentamente o velho Castilho.
HL - Mas nesta luta de Antero e Castilho, como em todas as lutas, existiam apoiantes de ambas as partes...
Eça - ... é claro. Antero era apoiado por Teófilo Braga, Oliveira Martins e por mim, entre outros. Ao lado de Castilho aparecem Pinheiro Chagas e Camilo. A juventude apoiante de Antero ficou conhecida por Geração de 70 e toda esta questão por Questão Coimbrã.
HL - Há quem diga que a geração de 70 corresponde a um "terceiro romantismo". Concorda com esta afirmação?
Eça - Concordo. Se se considerar Herculano e Garrett como o "primeiro romantismo"e António Feliciano de Castilho como o "segundo romantismo", então nós somos o "terceiro romantismo".
HL- Terceiro romantismo esse que se opõe ao segundo romantismo...
Eça- ...é claro, pois se Antero e Castilho são opositores, logo os romantismos por eles defendidos também se opõem!
HL - Apesar do terceiro romantismo adoptar, de certo modo, as ideias políticas e culturais do romantismo de Garrett, as suas influências ideológicas são bastante diferentes.
Eça - Sim. A nossa ideologia é influenciada por Hegel, Marx, e outros; a nível de elementos estéticos, os mais marcantes são o realismo e o naturalismo de Zola e de Flaubert,estes últimos que consistem em...
HL - Sr. Eça, deesculpe interrompê-lo, mas gostaria de lhe pedir que guardasse esse tema do Naturalismo e do Realismo para daqui a pouco, pois é um tema que também aqui vamos desenvolver. Mas agora gostaria de lhe fazer uma outra pergunta, se não se importa...
Eça - Não, de maneira nenhuma. Sabe como é, são tão raras as oportunidades de se fazer história completa, que nos deixamos levar pelo entusiasmo. Mas continue...
HL - A próxima questão é a seguinte: O Sr. fez parte da sociedade "inter-amicos", os Vencidos da Vida, formada em Lisboa no ano de 1887/88. Qual a finalidade desta sociedade?
Eça - Os Vencidos da Vida era um grupo de personalidades de relevo na vida literária (isto só cá para nós, de grandes personalidades!). A ideia partiu de Ramalho Ortigão e tinha como objectivo juntar colegas que outrora tinham pertencido à Geração de 70.
HL - Isso quer dizer que os assuntos discutidos em tais reuniões eram uma continuação da Questão Coimbrã?
Eça - Não propriamente, pois a questão Coimbrã foi mais uma questão literária e a manifestação dos Vencidos era uma atitude de protesto perante a vida portuguesa. É claro que a nossa manifestação, era a manifestação do espírito de reforma, inaugurada com a questão Coimbrã, simbolizando o objectivo aristocrático e intelectual do movimento da Geração de 70, que em conflito com as leis regentes do constitucionalismo tornou-se um pessimismo irónico e elegante. Talvez nós (os vencidos) não tenhamos sido uma continuação da questão Coimbrã, mas sim uma evolução da mesma. É também nesta fase que eu, Antero de Quental e Oliveira Martins renunciamos à acção política, surgindo assim o socialismo utópico.
HL - Agora sim, vamos falar do Naturalismo e do Realismo. O período do realismo teve início com a questão Coimbrã. Posteriormente aparecem as conferências do Casino. No que é que consistiam essas conferências?
Eça - A ideia partiu de Antero de Quantal, com a finalidade de unir os adeptos das novas ideias, que tinham sido colegas em Coimbra. Essa conferências permitiam-nos discutir (e essa é que era a sua verdadeira finalidade) as questões contemporâneas: religiosas, políticas, sociais e científicas.
HL - Por isso elas eram chamadas de "livres, democráticas e científicas"...
Eça - Sim, pois elas tornaram-se num meio de propaganda aberta de um ideal revolucionário para a transformação social, moral e política dos povos.
HL - Toda a base destas conferências poder-se-á chamar de dupla, uma vez que se baseiam nas ciências humanas despertadas ao nível desta geração e nas ciências políticas consciencializadas pela geração anterior. Concorda?
Eça - Sim, concordo. Senão vejamos as preocupações dos conferencistas de 71:
1.º - Ligar Portugal ao movimento moderno
2.º - Agitar, na opinião pública, as grandes questões da filosofia e da ciência modernas
3.º - Estudar todas as ideias e todas as correntes do século
4.º - Adquirir a consciência dos factos que nos rodeiam na Europa.
HL - É todo esse interesse pela realidade e pela análise social que caracteriza o realismo.
Eça - Ideologicamente falando é, pois o Realismo opõe-se ao Idealismo, ou seja, ao Romantismo, com toda a sua formalidade e sentimentalismo. O Realismo não é nada disso, pelo contrário, ele é anti-idealista; o Realismo quer observar os factos e analisá-los rigorosamente.
HL - E quais os temas de interesse dos realistas?
Eça - Os realistas preocupavam-se em exteriorizar a vida burguesa nos seus aspectos negativos: a ambição, a avareza, a cobiça, a corrupção; representavam também a vida urbana, pois é nas grandes cidades que mais se fazem sentir as tensões sociais, políticas e económicas.
HL - Sendo assim, os realistas procuram mostrar o sofrimento social e moral da frustração, da corrupção e do vício.
Eça - Sim, absolutamente. De um modo geral, o realismo denuncia e analisa criticamente os vícios da sociedade.
HL - O período que se segue ao Realismo é o Naturalismo. Ideologicamente, o Naturalismo é influênciado pela ciência e pela filosofia do século XIX, destacando-se o positivismo de Auguste Comte, onde o importante é analisar vigorosamente os factos e as suas causas. O Determinismo, pensamento relacionado com o Positivismo, também é importante pois preocupa-se mais com as causas dos fenómenos, do que com os fenómenos propriamente ditos. Tematicamente, quais as principais preocupações dos Naturalistas?
Eça - Os temas fundamentais dos Naturalistas são: o alcoolismo como deformação social; o jogo como consequência de determinadas situações de injustiça; o adultério como resultante de uma educação romântica errada; a opressão social como resultante de interesses económicos, políticos e sociais.
HL - Agora gostava que explica-se onde é que tudo isto se aplica em "Os Maias".
Eça - Para fazer essa explicação, vamos por partes: No capítulo VI, durante a discussão entre Alencar e Ega, no Hotel Central, está presente a oposição das duas correntes literárias (Realismo versus Romantismo), e a sua caracterização:
"Craft não admitia também o naturalismo, a realidade feia das coisas e da sociedade estatelada nua num livro.(...)
(...) Ega, horrorizado, apertava as mãos na cabeça - quando do outro lado Carlos declarou que o mais intolerável no realismo eram os seus grandes ares científicos, a sua pretensiosa estética deduzida de uma filosofia alheia, e a invocação de Claude Bernard, do experimentalismo, do positivismo, de Stuart Mill e de Darwin, a propósito de uma lavadeira que dorme com um carpinteiro!" (Os Maias)
(...) Ega, horrorizado, apertava as mãos na cabeça - quando do outro lado Carlos declarou que o mais intolerável no realismo eram os seus grandes ares científicos, a sua pretensiosa estética deduzida de uma filosofia alheia, e a invocação de Claude Bernard, do experimentalismo, do positivismo, de Stuart Mill e de Darwin, a propósito de uma lavadeira que dorme com um carpinteiro!" (Os Maias)
HL - Também se pode interpretar essa discussão como o simbolizar da questão Coimbrã?
Eça - Sim, nesse caso Alencar, que defende o Romantismo, corresponde a Castilho, e Ega,
defensor das teorias naturalistas, simboliza Antero.
HL - As conferências do Casino também estão presentes neste romance?
Eça - Estão, no capítuo IV, onde se relata todo o ambiente nocturno nos Paços de Celas, e onde se discutia a Arte, o Positivismo, o Realismo e outros assuntos relacionados com o Naturalismo.
"Os Paços de Celas, sob a sua aparência preguiçosa e campestre, tornaram-se uma fornalha de actividades. No quintal fazia-se uma ginástica científica. Uma velha cozinha fora convertida em sala de armas - porque naquele grupo a esgrima passava como uma necessiade social. À noite, na sala de jantar, moços sérios faziam um wist sério: e no salão, sob o lustre de cristal, com o Fígaro, o Times e as revistas de Paris e de Londres espalhadas pelas mesas, o Gamacho ao piano tocava Chopin e Mozart, os literatos estirados pelas poltronas - havia ruídosos e ardentes cavacos, em que a Democracia, a Arte, o Positivismo, o Realismo, o Papado, Bismarck, o Amor, Hugo e a Evolução, tudo por seu turno flamejava no fumo do tabaco, tudo tão ligeiro e vago como o fumo. E as discussões metafísicas, as próprias certezas revolucionárias adquiriram um sabor mais requintado com a presença do criado de farda desarrolhando a cerveja, ou servindo croquetes." (Os Maias)
HL - Sr. Eça, o sr. não manifesta a sua discordância com o Romantismo neste romance?
Eça - Mas é claro que sim! E faço-o no capítulo III através de Afonso da Maia, na sua conversa com o abade.
"(...) Mas enfim os clássicos - arriscou timidamente o abade.
- Qual clássicos! O primeiro dever do homem é viver. E para isso é necessário ser são, e ser forte. Toda a educação sensata consiste nisto :criar a saúde, a força e os seus hábitos, desenvolver exclusivamente o animal, armá-lo de uma grande superioridade física, Tal qual como se não tivesse alma. A alma vem depois .... A alma é outro luxo. É um luxo de gente grande...
O abade coçava a cabeça, com o ar arrepiado.
- A instruçãozinha é necessária - disse ele. - Você não acha, Vilaça? Que Vossa Excelência, Sr. Afondo da Maia, tem visto mais mundo do que eu... Mas enfim a instruçãozinha...
- A instrução para uma criança não é recitar Tityre, tu patulae recubans... É saber factos, noções, coisas úteis, coisas práticas..." (Os Maias)
HL - E a fase dos vencidos da vida, onde é que se situa?
Eça - Essa fase está no último capítulo, quando Carlos, após 10 anos de permanência por terras francesas volta a Lisboa e encontra tudo na mesma, é a desilusão, a tomada de consciência de que a sua luta foi em vão.
"(...) E Carlos reconhecia, escostados às mesmas portas, sujeitos que lá deixara havia dez anos, já assim encostados, já assim melancólicos. (...)
- Falhámos a vida, menino!
- Creio que sim... Mas todo o mundo mais ou menos a falha. Isto é, falha-se sempre na realidade aquela vida que se planeou com a imaginação. Diz-se: "Vou ser assim, porque a beleza está em ser assim." E nunca se é assim, é-se invariavelmente assado, como dizia o pobre marquês. (...) Com efeito, não vale a pena fazer um esforço, correr com ânsia para coisa alguma.
Ega, ao lado, ajuntava, ofegante, atirando as pernas magras:
- Nem para o amor, nem para a glória, nem para o dinheiro, nem para o poder...
A lanterna vermelha do americano, ao longe, no escuro, parara. E foi em Carlos e em João da Ega uma esperança, outro esforço:
-Ainda o apanhamos! (...)" (Os Maias)
HL - Obrigado, por esta lição de literatura!